Considerações Iniciais
Importante consignar, inicialmente, que o Brasil adotou a estrutura monogâmica, tanto é verdade que o nosso ordenamento jurídico estabelece a pena de reclusão de 2 a 6 anos para aqueles que contraírem um segundo matrimônio (art. 235, do Código Penal).
Além disso, aquele que não é casado e contrai núpcias com pessoa casada, sabendo dessa circunstância, é punido com pena de detenção de 1 a 3 anos, ou seja, não há falar-se em famílias paralelas no ordenamento jurídico brasileiro.
Características do Casamento
O casamento é formal e solene por natureza, pois até chegar o momento do SIM as partes precisam passar por um procedimento matrimonial bastante peculiar e um deles é o famoso processo de habilitação, que nada mais é do que um requerimento feito pelos nubentes (noivos), de próprio punho, com a juntada de documentos e declaração de duas testemunhas, parentes ou não, atestando conhecerem as partes e que nenhum impedimento pesa sobre o referido enlace matrimonial (art. 1.525, I e III, do Código Civil).
Apenas para contextualizar, um grande impedimento seria o fato de uma das partes estar legalmente casada, o que obstaria de imediato a celebração matrimonial, ressaltando que isso decorre do princípio da monogamia, princípio este adotado pelo Brasil e que deve ser observado não só pela sociedade, mas, principalmente, pelas autoridades.
União Estável
A união estável, por sua vez, é isenta de formalidades, tratando-se de uma situação de fato, informal e que, inclusive, não altera o estado civil dos conviventes, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, devendo, necessariamente, estar presente o objetivo de constituição de família.
Vale ressaltar que na união estável, os conviventes agem como se casados fossem, tratando-se no dia-a-dia como marido e mulher, inclusive pelas redes sociais, como se fossem um casal formado pelo matrimônio e aos olhos da sociedade, essas duas pessoas são, de fato, marido e mulher.
De modo bem singelo, se há convivência pública, contínua e duradoura e se o objetivo de constituição de família já estiver consumado, isto é, se essas duas pessoas se tratam como se casadas fossem, se ajudam mutuamente, moral e financeiramente, estamos diante de uma união estável.
TJ-RS reconhece união estável paralela ao casamento
Divisão de bens entre esposa e “convivente” do falecio
A 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, deu parcial provimento ao recurso de apelação interposto pela mulher que se relacionou com o falecido por mais de 14 anos, que por sua vez era legalmente casado, portanto, uma clara relação adulterina.
Mesmo diante do evidente concubinato, a decisão reconheceu união estável paralela ao casamento, o que significa dizer que os bens adquiridos na constância da referida “união estável” devem ser partilhados, em prejuízo – principalmente do ordenamento jurídico – da esposa e filhos do falecido, o que deverá ser pleiteado em ação própria.
Consta da decisão que o reconhecimento de união estável quando paralelo ao casamento é incomum, consignando que o Código Civil estabelece como exceção apenas quando a pessoa é separada de fato ou judicialmente e, nesse ponto, data máxima vênia, devo ponderar que o reconhecimento não é incomum, mas sim totalmente contrário à legislação vigente.
Ademais, segundo entendimento da maioria, se a esposa concorda em compartilhar o marido em vida, também deve aceitar a divisão de seu patrimônio após a morte, não podendo o formalismo legal prevalecer sobre a situação de fato, sendo o afeto o norte do Direito de Família contemporâneo.
Consignam, ainda, que o conceito de família está em transformação, permitindo-se a revisão do princípio da monogamia e o dever de lealdade estabelecidos, deixando de lado julgamentos morais, certo é que casos como o presente são mais comuns do que pensamos e merecem ser objeto de proteção jurídica, até mesmo porque o preconceito não impede sua ocorrência, muito menos a imposição do ‘castigo’ da marginalização vai fazê-lo.
Votos a favor da união estável paralela ao casamento
Entre os julgadores que acompanharam o voto do relator, O Desembargador Rui Portanova comentou sobre outro aspecto do processo, que é a repartição de bens do falecido: “não vejo como justo que um relacionamento que durou décadas, e que era de todos conhecido, pode simplesmente ser apagado do mundo jurídico”, disse ele.
“A partir desse ponto de vista, é preciso buscar a interpretação da regra que melhor se aproxima do direito posto sem, contudo, permitir que qualquer das partes obtenha vantagem em detrimento do direito da outra”.
O Desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl reconheceu o relacionamento estável afirmando que solução diferente “consagraria, ao cabo, uma situação de injustiça e, especialmente, de enriquecimento indevido da Sucessão”.
Para a Juíza de Direito convocada ao TJRS, Rosana Broglio Garbin, o ordenamento jurídico deve acompanhar a evolução das relações sociais de modo a superar “conceitos atrasados” e que não atendam à pluralidade das entidades familiares.
Posicionamento divergente
Pelo não reconhecimento da união estável paralela ao casamento
O posicionamento divergente do Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, cujo entendimento é de que o direito de família brasileiro está baseado no princípio da monogamia e que se não são admitidos como válidos dois casamentos simultâneos, não há coerência na admissão de uma união de fato (união estável) simultânea ao casamento, sob pena de se atribuir mais direitos a essa união de fato do que ao próprio casamento, pois um segundo casamento não produziria efeitos, enquanto aquela relação fática, sim.
Minhas Considerações
Como bem observou o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos – que do mesmo entendimento compartilho – se um segundo casamento (bigamia) não produz efeitos jurídicos – sendo nulo de pleno direito -, uma união estável paralela ao casamento também não pode e nem deve produzir efeitos jurídicos, sobretudo na esfera do Direito de Família e Sucessões.
A decisão atribuiu mais direitos à união estável do que ao próprio casamento, o que não faz o menor sentido do ponto de vista legal, até pelo fato de que o art. 1.727, do Código Civil, vigente e absolutamente didático, considera a relação em comento concubinato, adulterina e indigna de direitos.
A decisão de primeira instância, embora tenha reconhecido a existência da relação amorosa, acertadamente, foi pela improcedência da demanda, exatamente por tratar-se de uma relação adulterina, num típico caso de concubinato impuro, nos termos do art. 1.727, do Código Civil.
Concubinato Puro e Concubinato Impuro
Apenas para esclarecer ao leitor, concubinato impuro diz respeito à relação adulterina, que envolve adultério: Fulano e Ciclana são casados e Fulano passou a ter uma relação extraconjugal com Beltrana por um longo período. Beltrana é amante, não podendo-se falar que Beltrana é companheira de Fulano, atribuindo a Ela direitos, pois o nosso ordenamento jurídico veda expressamente esse tipo de conduta.
Concubinato puro seria a união estável dos dias de hoje, pois esse termo CONCUBINATO foi bastante utilizado no período em que as famílias eram formadas apenas e tão-somente pelo casamento, ou seja, as famílias que não eram formadas pelo casamento recebiam o nome de concubinato, não tinham proteção do Estado etc., mas com a Constituição Federal de 1988, tornado a união estável uma entidade familiar, o termo concubinato foi extinto, sendo utilizado, nos dias de hoje, apenas para determinar, em suma, que uma relação é adulterina ou incestuosa.
União estável paralela ao casamento é nula
Todavia, nos termos do artigo 1.548, II, do Código Civil, é nulo o casamento contraído por infringência de impedimento legal e se o casamento é nulo, a “união estável” paralela ao casamento também é nula, visto que a união estável não pode se sobrepor ao casamento, questão muito bem observada pelo Des. Luis Felipe Brasil Santos.
União poliafetiva
Ultrapassada a questão do concubinato, os magistrados entenderam que “se a esposa concorda em compartilhar o marido em vida, também deve aceitar a divisão de seu patrimônio, após a morte”, e desse simples posicionamento encontramos as características do poliamor: 1) relação entre três ou mais pessoas; 2) relações simultâneas; 3) transparência; 4) consentimento; 5) afeto; 6) inexistência de ciúmes.
Além das características acima, da decisão consta que a esposa, além de saber e consentir, tinha consciência de que o marido arcava com as despesas da concubina e teve ciência de dois presentes caros, como um imóvel e um automóvel, relevando mais uma característica do poliamor: igualdade de tratamento.
Ponderam, ainda, que os sentimentos não estão sujeitos a regras, nem tampouco a preconceitos e que o princípio da monogamia e dever de lealdade tinham de ser revistos diante da evolução histórica do conceito familiar, acompanhando os avanços sociais.
Não restam dúvidas de que a decisão demonstra as características uma relação poliafetiva e sobre esse tema já se manifestou o Conselho Nacional de Justiça. Senão, vejamos.
Conselho Nacional de Justiça
Proibição de lavratura de uniões poliafetivas pelos Cartórios
Após o surgimento de algumas escrituras públicas de união poliafetiva (Tupã, São Vicente e RJ), o CNJ foi provocado pela Associação de Direito de Família e das Sucessões em abril de 2016, para que tomasse providências no sentido de proibir tais registros, sendo que em junho de 2018 (26/06/2018), determinou – em decisão plenária – que as corregedorias de justiça proibissem os cartórios nesse sentido, ressalvando o Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, que escritura pública serve para declarar a vontade das partes, mas essa vontade tem de ser lícita e seria apenas esse o ponto, ponderando a Min. CARMEN LÚCIA que todos têm o direito à liberdade, sobretudo o direito à liberdade sexual, amorosa e de convivência, direitos estes garantidos pela Carta Magna, mas tais registros devem estar revestidos de legalidade.
A formalização (união estável ou casamento) da união poliafetiva não é permitida pela lei e os Cartorários, tendo em vista a ilicitude apontada, não devem lavrar escrituras públicas de união poliafetiva.
Entendimento do STJ
O STJ entende pela inadmissibilidade do reconhecimento de relações paralelas, sendo que se uma das relações for considerada união estável, as demais serão consideradas concubinato ou sociedade de fato, ressalvando que os magistrados devem se atentar aos princípios constitucionais (dignidade, liberdade, afetividade, igualdade, na busca da felicidade), mas com redobrada atenção ao primado da monogamia.
Portanto, dessa relação poliafetiva apenas a união entre duas pessoas (do mesmo sexo ou não) seria considerada válida, legítima, lícita e sendo reconhecida a união estável, as demais relações – consideradas paralelas -, seriam tidas como concubinato, que por sua vez sem qualquer reconhecimento legal.
Conclusões finais
A nossa legislação considera válida e legítima a existência de apenas uma entidade familiar, não podendo haver uma outra entidade familiar paralela, pois caso aconteça a segunda relação estaria viciada pelo que ordenamento jurídico chama de concubinato, que por sua vez, tornaria nulo o segundo relacionamento.
A decisão sugere que o princípio da monogamia e o dever de lealdade devem revistos diante da evolução histórica do conceito de família, dando margem à possibilidade de relações poligâmicas, sendo o das relações poliafetivas: relação íntima de afeto entre três ou mais pessoas, que envolve transparência, consentimento, igualdade no trato e inexistência de ciúmes, e como visto acima, a sua formalização não é permitida pela lei diante da estrutura monogâmica estabelecida em nosso país.
Além disso, recentemente (15/12/2020), o STF considerou ilegítima a existência paralela de duas uniões estáveis, ou de um casamento e uma união estável, inclusive para efeitos previdenciários, sendo que no caso concreto, por maioria de votos, o Plenário negou provimento ao Recurso Extraordinário RE n. 1.045.273, com repercussão geral reconhecida, estabelecendo que “a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, parágrafo 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro“.
Por fim, entendo que a decisão proferida pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reconhecendo a existência de união estável paralela do casamento e atribuindo à união estável direitos – que deverão ser buscados em ação própria – data máxima vênia, não se sustenta.
Edney de Almeida Silva
Consultor jurídico em São Paulo
Especialista em Direito de Família e Sucessões