Filiação socioafetiva – pai é quem cria

Formato familiar contemporâneo

A filiação socioafetiva, como o nome bem sugere, decorre, exclusivamente do afeto , da simples convivência social e da afetividade recíproca entre as partes, sendo reconhecida – juridicamente – pela maternidade ou paternidade com base no afeto, sem a necessidade de vínculos sanguíneos, bastando apenas que um homem ou uma mulher crie um filho como se seu fosse, sem qualquer vínculo biológico.

Sobre esse sensível e delicado tema, citarei a Dra. Maria Berenice Dias, um dos grandes nomes do Direito de Família e Sucessões, que de forma bastante objetiva estabelece a distinção entre paternidade biológica e paternidade socioafetiva:

Nunca foi tão fácil descobrir a verdade biológica, mas essa verdade tem pouca valia frente à verdade afetiva. Tanto assim que se estabeleceu a diferença entre pai e genitor. Pai é o que cria, o que dá amor, e genitor é somente o que gera. Se durante muito tempo por presunção legal ou por falta de conhecimentos científicos confundiam-se essas duas figuras, hoje possível é identificá-las em pessoas distintas”.

Isso é fato – Pai é quem Cria!

Em poucas e objetivas palavras, essa grande jurista trouxe à tona um ditado popular bastante conhecido, qual seja, pai é quem cria, e essa é uma verdade milenar incontestável, que ganhou corpo, forma e possibilidade após a promulgação da Carta Magna de “88”, a partir de seus princípios mais fundamentais: dignidade da pessoa humana, igualdade, igualdade absoluta entre filhos e propriamente do afeto, que foi extraído de diversos mandamentos constitucionais.

Art. 227, § 6º, da Carta Magna (igualdade absoluta)

A Constituição Federal, dentre tantos princípios, direitos consagrados e após um longo período de injustiças cometidas contra as famílias que não eram formadas pelo casamento, rompeu com desigualdade absurdas no tocante à filiação. Senão, vejamos:

Art. 227 (…)

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Assim, aos olhos da nossa Carta de Direitos e da legislação infraconstitucional vigente, não há mais qualquer distinção entre filhos, pouco importando a sua origem, enfim, filhos são filhos e ponto final.

Art. 1.593, do Código Civil (fundamentação jurídica)

Com efeito, o art. 1.593, do Código Civil, somado a todos os princípios extraídos da Constituição Federal, principalmente o da proibição discriminatória de um passado cruel e de grandes injustiças, trouxe a base de sustentação do parentesco socioafetivo, ao afirmar que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

A parte final outra origem, foi o suficiente para que bons advogados utilizassem a tese da filiação socioafetiva, demonstrando o valor do afeto e os grandes benefícios às partes envolvidas, precipuamente às crianças e adolescentes, ao passo que os Tribunais passaram a atender tais pleitos.

O PADRASTO E A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

Há outras possibilidades de paternidade ou maternidade, mas costumo exemplificar a filiação socioafetiva com a figura do padrasto a fim de facilitar o entendimento, até pelo fato de ser mais perceptível a compreensão de um assunto tão delicado.

Vale ressaltar que a relação entre o padrasto ou a madrasta, nem sempre, pode ser caracterizada como uma relação socioafetiva, pois uma coisa é a boa relação entre padrasto e enteado e outra é a relação socioafetiva propriamente dita, em que padrasto e enteado se tratam como pai e filho, cujos laços foram criados pela convivência estabelecida, diariamente, baseada no amor, no afeto, no respeito, no carinho e tais sentimentos afloram o instituto da filiação socioafetiva, portanto, a relação entre o enteado e o padrasto não significa, necessariamente, a caracterização da relação socioafetiva.

Contextualização: A e B têm um compromisso amoroso, que acabou gerando um filho. A, em decorrência do fato, deu no pé, deixando B sozinha. A sumiu, deixando B à sua própria sorte, não quis saber do filho e apenas registrou quando nasceu e passou a pagar pensão alimentícia.

Ocorre que B conheceu C, que passou a ser um verdadeiro companheiro e pai para a criança, cuidando, levando ao pediatra, ao berçário, tratando como se o filho tivesse sido gerado com a sua contribuição, ou seja, um autêntico pai.

Essa é a famosa filiação socioafetiva, que nasce do afeto, que é o que realmente importa em qualquer relacionamento e, quando o afeto existe entre pais e filhos, melhor ainda.

Não é verdade?

E não encerra por aí, pois esse padrasto que é um verdadeiro pai, pode ter seu nome inserido no assento de nascimento da criança, isto é, é possível o reconhecimento jurídico da paternidade, deixando de ser um pai socioafetivo nas relações de fato e passando a ser um pai, para todos os efeitos da lei.

Reconhecimento jurídico pela via extrajudicial

Tendo a criança mais de 12 anos de idade, é possível o reconhecimento jurídico da paternidade perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, onde o registrador avaliará se a relação socioafetiva existe, de fato, conforme o provimento n. 83, do Conselho Nacional de Justiça:

Art. 10-A. A paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e deve estar exteriorizada socialmente.

§ 1º O registrador deverá atestar a existência do vínculo afetivo da paternidade ou maternidade socioafetiva mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos.

§ 2º O requerente demonstrará a afetividade por todos os meios em direito admitidos, bem como por documentos, tais como: apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; vínculo de conjugalidade – casamento ou união estável – com o ascendente biológico; inscrição como dependente do requerente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida.

§ 3º A ausência destes documentos não impede o registro, desde que justificada a impossibilidade, no entanto, o registrador deverá atestar como apurou o vínculo socioafetivo.

§ 4º Os documentos colhidos na apuração do vínculo socioafetivo deverão ser arquivados pelo registrador (originais ou cópias) juntamente com o requerimento.

III  o § 4º do art. 11 passa a ter a seguinte redação:

§ 4º Se o filho for menor de 18 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento.

Como bem observado no caput do art. 10-A, a relação socioafetiva deve ser pública, contínua e duradoura, devendo ser levados em consideração o trato e a fama: é preciso avaliar se as partes realmente se tratam como pai e filho e se esse tratamento existe da residência para fora, já que de nada adianta tratarem-se como pai e filho dentro de casa e diante dos amigos, familiares, vizinhos, colegas de trabalho etc., tratarem-se como padrasto e enteado.

O § 2º, por sua vez, traz alguns possíveis meios de prova, sendo certo que a ausência dos mencionados documentos não impede o registro, mas o registrador terá de justificar como foi apurado o vínculo socioafetivo.

Além disso, para que seja reconhecido o vínculo jurídico da paternidade, o menor deve estar de acordo, não podendo ser realizado sem o seu consentimento.

Parecer do Ministério Público

Contudo, documentos apresentados e estando tudo em ordem, tal expediente será encaminhado ao representante do Ministério Público para análise e parecer. Caso o parecer seja favorável, o registrador realizará o ato, mas caso seja desfavorável, comunicará as partes e arquivará o expediente.

Caso haja alguma dúvida, o expediente será encaminhado ao juízo competente para análise e decisão.

Reconhecimento da filiação socioafetiva pela via judicial

Tendo a criança menos de 12 anos de idade, o reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva deve ser realizado, obrigatoriamente, pela via judicial.

Direitos decorrentes da filiação socioafetiva

Importante esclarecer que o reconhecimento da paternidade socioafetiva é um caminho sem volta, pois trata-se de um ato irrevogável – salvo exceções -, sendo assegurados à criança ou adolescente todos os direitos inerentes ao estado de filiação.

Dissolução da união estável

Divórcio

No caso de dissolução da união estável ou divórcio, a paternidade restará intacta, de modo que a criança permanecerá com todos os seus direitos e garantias assegurados por lei: convivência familiar, pensão alimentícia e herança, caso o pai socioafetivo faleça.

Consulte, sempre, um advogado ou advogada de sua confiança.

Edney de Almeida Silva

Consultor jurídico em São Paulo

Especialista em Direito de Família e Sucessões

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A resposta é não, pois diante do regime da comunhão parcial de bens, a herança de João é apenas de João, não se comunicando com os bens do casal, conforme o art. 1.659, I do Código Civil.

Mesmo pagando pensão, o pai responde pelo abandono afetivo

A assistência material (pagar a pensão alimentícia) não tem nada a ver com a assistência afetiva, portanto, a alegação de que sempre pagou a pensão alimentícia não convencerá a justiça numa possível ação indenizatória pelo abandono afetivo.

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